“HÁ DIAS QUE SÃO NOITES”

Há uma frase que eu ouvi muitas vezes de um freguês do meu pai, o “seo” Jarbas. Quando ele estava profundamente irritado, ele não fazia nenhuma questão de disfarçar o mal humor e dizia repetidamente: “há dias que são noites”.

Meu pai foi um pequeno comerciante, começou nas feiras livres.

Costumo ir à feira do Cambuí, gosto de observar aqueles fregueses que pechincham apenas pelo prazer de fazê-lo; também me chama a atenção aqueles fregueses e feirantes que criam laços de afetividade, isso sustenta a tradição de ir à feira toda semana; gosto de comer pastel de queijo e tomar caçulinha; além de observar o colorido e a variedade dos produtos ali encontrados; gosto dos aromas e das lembranças.

Aliás, as lembranças da minha infância teimam em não ir embora, ao contrário das Casimiro de Abreu, não tenho saudades porque minha a infância vive em mim.

Voltando ao “seo” Jarbas.

Ouvi a primeira vez a expressão “há dias que são noites”, eu tinha treze anos e não entendi o que significava, por isso perguntei a ele.

Ele estava de fato mal-humorado e disse rispidamente: “o Zé explica para você”. O Zé era o meu pai, cujo nome era Rogério José. E foi embora com a sacola cheia, mas bravo com o mundo.

Meu pai me explicou que ele estava irritado com um tal de “Pacote de Abril” e com mais golpe que o general-presidente deu naquele 1977.

Geisel criou os chamados “senadores biônicos” indicados por ele, para compensar a derrota acachapante que o regime militar sofreu nas eleições de 1974 e 1976 e ainda estabeleceu: o adiamento das eleições indiretas para governadores para 1982; aumentou o colégio eleitoral dos estados menores, onde o partido da ditadura era predominante e criou a campanha eleitoral mais ridícula da história, era apresentada n TV apenas uma foto ¾ do candidato e um resumo do seu currículo.

Esses fatos tenebrosos para democratas como o “seo” Jarbas eram o motivo do seu mau-humor transbordante.

Na História do Brasil quem ‘transforma os nossos dias em noites’ é esse pessoal da direta, o pessoal do “Deus – Pátria – Família”. Fascistas, hipócritas ou ignorantes, que usam o nome de Deus em vão.

A nossa república é fruto de um golpe militar patrocinado pela elite agrária vingativa e ressentida, está no DNA dessa gente dar golpes, sempre usando as forças armadas, sem voto e sem povo.

Começou em 1889 quando Deodoro se prestou ao papel de protagonista de um golpe militar, sem nenhuma participação popular. O golpe ocorreu porque o pessoal do agronegócio da época queria ser indenizado pela coroa em razão da abolição da escravatura. Um absurdo ao qual Dom Pedro não se rendeu.

Os então ex-proprietários de escravos aderiram à causa republicana, não por causa de algum ideal republicano, mas como “vingança” contra D. Pedro.

Como de valores democráticos e republicanos não nasceu a nossa república ocorreram muitos outros golpes, solapando a nossa democracia e sempre vindos da direita.

Há o “Golpe de Três de Novembro”, quando Deodoro dissolveu congresso e instaurou um estado de sítio; suspendeu a constituição, direitos individuais e políticos; o exército cercou o senado e garantiu ampla e “espontânea” adesão ao golpe… Os “subversivos” foram presos como de praxe.

Mas não é só.

Vinte dias após o golpe de 3 de novembro, Deodoro renunciou à presidência diante da possibilidade de outro golpe, agora da marinha brasileira, que ameaçou bombardear a cidade do Rio de Janeiro caso o presidente continuasse no cargo. Essa reação da marinha ficou conhecida como “Primeira Revolta da Armada”, mas não passou de um golpe.

Assumiu o vice, Floriano Peixoto. Como não havia um ano de mandato de Deodoro, a Constituição previa a convocação de novas eleições presidenciais. No entanto, Floriano não convocou as eleições e, golpeando a constituição, manteve-se presidente, sem votos e sem povo como a elite gosta.

O golpe de Floriano teve como consequências e ocorreu a “Segunda Revolta da Armada” e uma série de outros levantes contra o seu governo. Floriano venceu, manteve-se no cargo.

Veio a chamada “Revolução de 1930”, na realidade foi um golpe de caráter civil-militar encabeçado por lideranças dos estados da Paraíba, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.  Caiu a Primeira República ou República Velha. Assumiu o caudilho e ditador Vargas.

Em 1937 chegou o “Estado Novo”, através de mais um golpe de Estado e do fantasioso argumento do risco de uma revolução comunista, o Exército e Getúlio usaram o Estado de Guerra, suspendendo os direitos constitucionais, fechando o Congresso Nacional e cancelando as eleições presidenciais previstas para janeiro de 1938.

Mesmo a deposição de Vargas em 1945 deve ser qualificada como golpe, pois os mesmos militares que apoiaram o golpe de 1937 o tiraram o poder, tudo sem participação popular.

Observe-se que o povo e o voto popular são ausentes e inconveniente para esses intermináveis “dias que são noites”.

O Golpe civil-militar de 1964, nasceu em 1950 com a vitória indesejada de Getúlio Vargas nas urnas – indesejada pelas oligarquias de então. Golpe que só não aconteceu em 1954 porque Vargas suicidou-se e, transformado em mártir, adiou a sanha de poder da direita entreguista e sem voto, mas por apenas dez anos.

Chegou-se ao golpe de 2016, muito sofisticado e revestido de ares de legalidade e constitucionalidade, legitimado por um acovardado pelo STF. O golpe de 2016, por estar envolvido num véu de legalidade, pode enganar os contemporâneos, mas não iludirá a História.

Um processo eleitoral de 2018 fraudado por Moro e sua quadrilha, possibilitou a eleição de um fascista até então irrelevante.

Eu não imaginei que viveria um Golpe de Estado, nem o ressurgimento do fascismo que o olavobolsonarismo representa.

Por essas e outras o “seo” Jarbas tem razão: “há dias que são noites”.

Essas são as reflexões.

Pedro Benedito Maciel Neto, advogado e pontepretano – pedromaciel@macielneto.adv.br

 

 

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